O asno e a asneira de Boétie - um conto metafísico (por Guilherme Almeida)
- Guilherme Almeida
- 19 de abr. de 2016
- 2 min de leitura

"Há sempre uma solução bem conhecida para cada problema humano -- clara, plausível, e errada" H.L.Mencken
Jules de Boétie padecia de dois males: uma sede incessante e um gosto patológico por querelas metafísicas. Derramava litros de água gelada garganta abaixo, numa velocidade vertiginosa, cuidando, logo em seguida, de aproveitar os minutos de tranquilidade fisiológica que lhe sobreviriam para desafiar os edifícios especulativos que sua imaginação lhe convocava. Na prestigiosa Artois do século XIV, não eram poucos os que se viam confusos entre a repulsa e a admiração ao eremita mais famoso do condado. Não havia disputa especulativa que mobilizasse mais os interstícios da sede de Boétie do que a contenda sobre a existência ou não de um fundamento metafísico do livre-arbítrio ou se deveríamos admitir sua realidade como uma mera ilusão psicológica dentre tantas outras.
No ano de 1352, o estoque de tecido para escrita produzido em Artois foi exaurido precocemente: duas mil folhas foram utilizadas apenas por seus esboços para uma obra jamais concluída sobre o tema. Durante a estiagem de 1353, que o levou, por motivos óbvios, a um ataque dos nervos, Boétie saltou quase nu e muito febril de sua cama em direção à praça do condado. Energicamente atou um asno faminto e sedento a uma árvore e calculou milimetricamente, em igual distância, um monte de feno e uma lata de água. Esbravejando no que parecia ser um francês de meteco, Boétie pretendia provar às custas da morte do asno sua tese de que a indiferença é o mais baixo grau de liberdade: por não conseguir decidir entre a bebida e a comida o asno terminaria morrendo – não deixava de repetir seu argumento a cada clérigo assustado que passava. Mas antes de concluída a prova do asno, a qual em seu ataque febril nomeou como “a mais que perfeita prova por reductio ad absurdum da história das querelas metafísicas”, o próprio Boétie não resistiu aos efeitos de sua desidratação patológica.
Uma multidão logo se acumulou em torno do acontecimento, em um misto de pavor e piedade por Boétie. Do burburinho, conta-se que se podia escutar uma despedida murmurada, tímida e quase envergonhada vinda de um dos clérigos de Artois - justamente os maiores rivais de Jules de Boétie: morre um dos asnos, fica a metafísica da asneira - há algo de belo, sublime e horroroso na teimosia. Guilherme Almeida, “Contos infames de literatura ontológica & retratos metafísicos clandestinos”, 2013
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