A Filosofia Na Cama de Procusto
- Guilherme Almeida
- 13 de abr. de 2016
- 7 min de leitura

O mito grego de Procusto é relativamente bem conhecido: conta o mito que Procusto era um ladrão que sequestrava quem atravessasse o caminho da floresta especular onde vivia - feita a sua imagem e semelhança - atando as vítimas a sua cama. Dos que eram maiores que sua cama, Procusto cortava os pés; dos que eram muito pequenos para a cama, Procusto os esticavam. *** Há muitos anos venho trazendo à baila uma hipótese ad hoc entre meus amigos e interlocutores - e isto como forma, sobretudo, de dar minha colaboração para que as instituições não caiam na inércia que às vezes lhes é potencial, sendo que incluo aí a mim e os que trabalham comigo. Eis a hipótese: aqueles que começam seus estudos em filosofia por consequência de uma "formação de compromisso" ou "profissão de fé" com esta ou aquela convicção em teoria política, estão entre os que mais facilmente extrapolam indevidamente as premissas que regem este domínio para outras regiões da investigação filosófica, como a ontologia, a epistemologia, a lógica, a ética, a estética e a filosofia da ciência, comportando-se como Procustos no aprendizado filosófico e científico - guardadas as devidas distâncias entre estes dois campos, claro. É um fenômeno notável: alguns colegas de profissão tendem a timidamente concordar comigo quando admitem que chega a ser mais comum encontrarmos religiosos que perdem ou questionam sua fé ao estudar filosofia (não estou dizendo que isto deva necessariamente ocorrer) do que estudantes ou colegas comprometidos com esta ou aquela visão de mundo política aceitarem colocar em suspenso, mesmo que metodologicamente e provisoriamente, a fé nas premissas que abraçam e que lhes servem de crivo para absolutamente tudo! De maneira especular e espetacular, tal como no mito de Procusto. A experiência nos dá testemunho amplo, de socialistas e liberais ao espectro conservador. É uma situação análoga daquelas crianças que, uma vez alfabetizadas a partir de um método equivocado, terão mais dificuldades do que as outras em reconstruir algumas competências linguísticas, mesmo aquelas inatas, ao longo da vida. Da antropologia à psicologia social, o fato já foi amplamente discutido (cf. a inglória "Introdução à Psicologia Política" do falecido Antonio Gomes Penna, rapidamente caída no ostracismo, cujo último curso tive a sorte de acompanhar há uns 20 anos). Portanto, vou aqui me concentrar naquilo que me diz respeito diretamente e essencialmente: a atividade filosófica. Em meu texto anterior, eu ressaltava que era preciso afirmar com força que o exercício e a prática da filosofia é anterior a qualquer preferência política. E que aquilo que ela pode e deve fazer no campo da Realpolitik (sic) é somente arguir de maneira cruel e implacável a dupla pretensão de qualquer narrativa política: a) do ponto de vista ético, sua pretensão em dizer por nós como deve ser a vida ao tentar conduzir com exclusividade o destino dos vivos - cumpre a nós recusarmos essa delegação, mesmo que ela apele às mais "belas intenções". b) e, do ponto de vista epistêmico, a pretensão em cooptar a busca pela verdade - recusemos, mesmo que elas prometam reduzir momentaneamente nossas pequenas infelicidades. Como já pude demonstrar e enfatizar em outras oportunidades, e ao contrário do que pode parecer à primeira vista, estas duas disposições que sustento NÃO significam uma neutralidade, nem uma isenção e nem uma pureza teologal ou consensual da atividade filosófica - o que seria obviamente um absurdo, dentre outras razões, porque sugeririam a interdição (não só impossível quid facti, como também indesejável quid juris) entre o campo político e a tarefa do pensamento. Trata-se de uma outra coisa, e inacessível a uma perspectiva imediata. À guisa de casuística, poderíamos até mesmo começar lembrando rapidamente... o começo da filosofia, da política e deste problema aqui elencado. Recordando Platão e Aristóteles e as incontáveis passagens onde eles realizam in loco a distinção do emaranhado de filosofia, erística e retórica que se apresenta confuso e misturado nas estratégias de implementação no campo político e cultural: que elas se apresentem amalgamadas na experiência argumentativa e agonística que pertence de direito à política, nem por isso significa que se trate das mesmas coisas. Tanto para Platão como para Aristóteles - para continuarmos nosso exemplo escolhido simplesmente pela critério cronológico, poderíamos facilmente escolher outro - enquanto a atividade filosófica possui uma finalidade intrínseca e autônoma, não possuindo assim um objeto que determine sua noologia de maneira inerte e perene, as duas últimas são reles técnicas de disputas argumentativas e opinativas, serviçais extrínsecas e heterônomas à atividade filosófica e, por isso mesmo, habitat natural do mito grego de Procusto quando transposto aos hábitos do pensamento - e isto mesmo quando recorrem ou citam os conceitos filosóficos no embate erístico (NOTA: quanto a este aspecto noológico, i.e., do "estudo das imagens do pensamento", é visto de forma apressada como sendo inaudita, por exemplo, a possibilidade de cotejo entre o Mario Ferreira dos Santos e Gilles Deleuze - não apenas do ponto de vista dos objetivos filosóficos mas também... pela realidade pitoresca de serem mais citados do que estudados, o primeiro supostamente pela audiência "à direita", o outro, supostamente pela audiência "à esquerda", como se as direções tivessem alguma relevância neste quesito, algo que não é correto nem verdadeiro; cf. "Noologia geral", Mario Ferreira dos Santos, de 1956 e "Diferença e Repetição", Deleuze, 1968; o ponto de inflexão aqui se encontra em outro filósofo pouco conhecido, quanto mais estudado, no Brasil, Emile Boutroux [1845-1921], influência subterrânea tanto de um, tanto de outro).
Ocasionalmente, observo algo de se lamentar quando vem da parte de divulgadores da filosofia - e nenhuma diferença cabe aqui se são simpatizantes de tendências políticas liberais, socialistas ou conservadoras: um desejo pela filosofia integralmente comprometido com o objetivo, ora inconsciente e latente, ora consciente e manifesto, de colocá-la exclusivamente a serviço de táticas e estratégias de ordem política. Mesmo que munidos de amplas referências (a bem da verdade, muito mais citadas como tática persuasiva do que efetivamente convocadas a serem lidas e estudadas com atenção por seus discípulos, seguidores, alunos, etc ), cometem um enorme desserviço à Filosofia - ainda mais se considerarmos a frágil e incipiente tradição de ensino de filosofia em nosso país - ao admitir serem bastante condescendentes com a absorção de uma coisa pela outra, sem o cuidado de distinguir entre disputa erística - que é legítima, claro - e o método filosófico. Ao tomarem partido por privilegiar a urgência das disputas efêmeras do poder em detrimento da investigação, por exemplo, de fins e valores que não fazem parte do escopo polemista do poder e da teoria política, tais Procustos se assumem - ainda que involuntariamente - niilistas em relação à filosofia, a ponto de somente acreditarem como real a espuma superficial das disputas por hegemonia cultural. Quanto a isto Nietzsche foi preciso... o niilismo é mesmo o maior sintoma de fraqueza e esgotamento das forças ativas: pois no niilista o pensamento não age, apenas reage.
Que, ao menos, tenham a decência de admitir claramente que é disto que se trata. Para todos estes, que são apenas hipostasiadores do socialismo, do liberalismo e do conservadorismo, eu diagnostico um mesmo erro, inadmissível do ponto de vista filosófico: consideram falsamente suas abstrações e conceitos pela realidade, ao pretenderem transformar relações lógicas contingentes em substâncias supostamente necessárias do real (no sentido ontológico da palavra - uma coisa é a palavra, outra a imagem, outro o conceito). Crises políticas passam; já as cabeças destruídas por uma alfabetização filosófica desonesta intelectualmente, pode ser que estas nunca mais se recuperem, sendo o estrago dificilmente revertido. No momento vigente, de toscas polarizações ao sabor do noticiário político, este é um problema que deve preocupar os filósofos e os professores de filosofia dedicados à prática docente. . Como disse anteriormente, não se trata aqui de uma chamado à neutralidade, pois filosofia alguma é neutra: mas de um chamado também à explicitação das intenções. Quem decalca a partir de uma determinada visão política sua weltanschauung para todas as regiões da atividade filosófica - e ainda assim pretende continuar falando do lugar de filósofo - deve se haver com as enormes inconsistências que daí advirão do ponto de vista ontológico, ético, lógico, epistêmico e estético.
Isto, claro, se pretende permanecer filósofo... Para um mero polemista este problema nem se coloca, porque nem mesmo os termos deste problema um simples polemista poderá entender. Como bem disse Deleuze, o anti-hegeliano do século XX: "Não podemos dizer que tudo convém a todos". Poucos parecem entender o valor e a sensibilidade aristocrática que emana dessa proposição deleuziana, o que só vem a confirmar o mote deste texto. De que se trata efetivamente o elemento aristocrático nesta bela e verdadeira proposição de Deleuze e as confusões e abusos dos proselitismos socialistas, liberais e conservadores em relação a seu conteúdo, independentemente, portanto, que tenha sido ele a proferi-la? Eis uma pergunta que abre um campo de respostas que podem, aqui e acolá, confirmar o que abordo neste brevíssimo ensaio."Que importa quem fala, disse alguém, que importa quem fala?" (Beckett). Deixo como pergunta, então, aos amigos e aos leitores. Quanto a mim, pude responde-la em minha tese de doutorado sobre a 'história da história da filosofia' e a ' filosofia da história da filosofia', cuja publicação editorial se encontra em curso de negociação. De todo modo, qualquer dia publico uma síntese aqui. Por fim, em torno das hipostasias socialistas, liberais e conservadoras, uma senha que permite compreender as origens inconscientes e as fontes implícitas dos 3 equívocos correlatos, basta digitar 5 letras: H-e-g-e-l. Do ponto de vista filosófico, e também cultural, a dialética da contradição de Hegel produziu hábitos e posturas do pensamento que ainda não nos livramos, mas é importante que nos livremos delas. É preciso exorcizar Hegel. To be continued... *** OBS.: Para uma crítica intrínseca e minuciosa a Hegel, no sentido apontado na conclusão deste texto, recomendo fortemente, modéstia às favas, meus dois trabalhos disponíveis em: "Nas trincheiras do pós-guerra: filosofia francesa, subjetividade e história (1945-1966) - um aventura arqueogenealógica", Guilherme Almeida, 2007. Biblioteca do Programa de Pós Graduação em Psicologia Social da UERJ. "Ensaio Sobre a Renascença Hegeliana no Pós-Guerra Francês". Guilherme Almeida, 2010. Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.
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