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Para Entender o Bergson-de-Deleuze

  • Guilherme Almeida
  • 29 de mar. de 2016
  • 8 min de leitura

Deleuze descreve o método da intuição elaborado por Henri Bergson (1859-1941) a partir de três dimensões: uma dimensão problematizante, no que se refere à crítica bergsoniana dos falsos problemas e sua conclamação pela invenção de verdadeiros problemas; uma dimensão diferenciante, no que se refere ao método de estabelecer cortes e interseções que se articulam no real; e, por fim, uma dimensão temporalizante, no que se refere a pensar principalmente em termos de duração. Cabe advertir, principalmente para os que não estão habituados ao vocabulário da tradição filosófica, que o termo intuição em filosofia não remete à conotação do senso comum de pressentimento ou uma simpatia vaga ou confusa, mas à faculdade de perceber algo imediatamente, sem mediações abstratas (do latim intuitio, olhar e intueri, olhar para). As três regras do método de Bergson correspondem a cada uma das três dimensões supracitadas. Vejamos:


  1. Primeira regra: aplicar a prova do verdadeiro e do falso ao nível dos problemas, reconciliando verdade e criação. Trata-se do poder de constituir os próprios problemas, de bem apresentá-los, estendendo o ato de criação a seus termos, e desfazendo-se de vez do preconceito social, infantil e escolar que entende os problemas como dados, cabendo-nos apenas a tarefa de solucioná-los. Um problema bem apresentado, embora possa permanecer velado indefinidamente, encerra em si suas soluções, que oportunamente se dão em função dos termos de que se dispõe para apresentá-los e das condições sob as quais é engendrado. Mas baseado em que se poderia aplicar o critério do verdadeiro e do falso à própria atividade de apresentação de problemas? Deleuze assinala que Bergson define dois tipos de falsos problemas: os problemas inexistentes e os problemas mal colocados. Os problemas inexistentes são aqueles cujos termos implicam uma confusão entre o “mais” e o “menos”; por sua vez, os problemas mal colocados se definem por representarem mistos mal analisados. O não-ser, a desordem e o possível são exemplos escolhidos por Bergson para problemas inexistentes, pois tomam o “mais” pelo “menos”. A ideia de não-ser, por exemplo, é a adição da ideia de ser, da operação lógica de negação generalizada e do motivo psicológico de tal operação (quando um ser não nos convém e o apreendemos apenas como ausência daquilo que nos interessa). Haveria, portanto, uma ilusão fundamental na pergunta pelo não-ser, pressupondo a existência do não-ser em relação ao ser, como se este viesse apenas preencher um vazio. É o que Bergson chama de "movimento retrógrado do verdadeiro", que nos leva a supor que o ser preceda a si mesmo, ao ato de sua própria criação, retroprojetando uma imagem de si mesmo num não-ser, numa possibilidade ou numa desordem primordiais. Quanto aos falsos problemas que se referem a mistos mal analisados, eles se caracterizam por juntar arbitrariamente coisas que diferem por natureza. Sob esse aspecto, Bergson entende que o próprio conceito geral de Ser é um misto mal analisado, porque em vez de auxiliar a apreender as diferentes realidades que se articulam umas às outras, as confunde numa homogeneidade do Ser, favorecendo o surgimento de equívocos relacionados à ideia de não-ser. Assim, os dois tipos de falsos problemas começam no momento em que se negligencia as diferenças de natureza, como no caso da ideia de não-ser nascida de uma ideia geral de Ser como misto mal analisado. Esta seria a ilusão do pensamento científico e metafísico, denunciada por Bergson: ver diferenças de grau quando há diferenças de natureza. Segundo Deleuze, “Bergson lança mão de uma ideia de Kant, pronto para transformá-la completamente: Kant foi quem mostrou que a razão, no mais profundo de si mesma, engendra não erros, mas ilusões inevitáveis, das quais só se podia conjurar o efeito. Ainda que Bergson determine de modo totalmente distinto a natureza dos falsos problemas, ainda que a própria crítica kantiana pareça-lhe um conjunto de problemas mal colocados, ele trata a ilusão de uma maneira análoga a de Kant. A ilusão está fundada no mais profundo da inteligência e, propriamente falando, ela é indissipável, não pode ser dissipada, mas somente recalcada” [1]. É justamente com este propósito que Bergson virá a suscitar a intuição como método, a fim de reencontrar as diferenças de natureza que estão sob as diferenças de grau, comunicando à inteligência os critérios para distinguir os verdadeiros e os falsos problemas, animando à inteligência a voltar-se contra si própria. Se a inteligência é a faculdade de colocar os problemas em geral (e o instinto, a faculdade de encontrar soluções), a intuição é quem decide acerca do verdadeiro e do falso no âmbito dos problemas. Dessa forma, Deleuze demonstra que colar apressadamente a etiqueta de antiintelectualismo ao bergsonismo é não atentar para o movimento de determinação recíproca entre a inteligência e o instinto enquanto tendências puras, sendo a elucidação deste movimento um dos grandes investimentos da filosofia de Bergson [2].

  2. Segunda regra: reencontrar as articulações do real, reencontrando as verdadeiras diferenças de natureza. Trata-se de buscar nos mistos que experiência nos propicia aquilo que eles têm de puro, dividindo-o em tendências puras, cujas diferenças são de natureza e não de grau. Por exemplo, lembrança e percepção se encontram tão misturadas em nossa experiência que não sabemos reconhecer o que cabe a uma e o que cabe à outra a não ser como diferenças de grau, nos fazendo incapazes de distinguir na representação as presenças puras da matéria e da memória. A intuição como método propõe distinguir, isto é, dividir o misto de acordo com tendências que diferem por natureza. Essa tarefa indica a necessidade de ultrapassar os parâmetros da experiência ordinária, organizada e estruturada em função das utilidades práticas e imediatas. Deleuze cita a advertência de Bergson quanto à necessidade de se “buscar a experiência em sua fonte, ou melhor, acima dessa viravolta decisiva, na qual, inflectindo-se no sentido de nossa utilidade, ela se torna propriamente experiência humana” [3]. Esse ultrapassamento, entretanto, não consiste em fazer o pensamento rumar na direção de conceitos gerais e abstratos, mas justamente em encontrar as articulações das quais a experiência real, singular e concreta depende; tais articulações não prefiguram condições mais amplas do que aquilo que elas condicionam. Nessa perspectiva, os conceitos que se elabora são talhados sobre a própria coisa, convindo somente a ela. Deleuze vê nesta regra um componente fundamental da constituição de um empirismo superior, que deve ser complementado pelo movimento de sentido inverso, de convergência e reintegração entre as linhas, após a diferenciação até o ponto virtual para o qual elas convergem – imagem virtual do ponto de partida, ela própria situada também além da “viravolta da experiência” –, tornando-nos aptos a relacionar a condição ao condicionado, sem que subsista então qualquer distância entre eles, fazendo com que o problema, tendo sido bem colocado, tenda a resolver-se por si mesmo. Quanto a esse aspecto do método, Deleuze explica: “Após ter seguido linhas de divergência para além da reviravolta, é preciso que estas se recortem não no ponto de que partimos, mas sobretudo em um ponto virtual, em uma imagem virtual do ponto de partida, ela própria situada para além da viravolta da experiência, e que nos propicia, enfim, a razão suficiente da coisa, a razão suficiente do misto, a razão suficiente do ponto de partida. Desse modo, a expressão ‘viravolta da experiência’ tem dois sentidos: primeiramente, ela designa o momento em que as linhas, partindo de um ponto comum confuso dado na experiência, divergem cada vez mais em conformidade com verdadeiras diferenças de natureza; em seguida, ela designa um outro momento, aquele em que essas linhas convergem de novo para nos dar dessa vez a imagem virtual ou a razão distinta do ponto comum. Viravolta e reviravolta. O dualismo, portanto, é apenas um momento que deve terminar na re-formação de um monismo. Eis por que, depois da ampliação, advém um derradeiro estreitamento, assim como há integração após a diferenciação.” [4]

  3. Terceira regra: a intuição supõe a duração, colocando e resolvendo os problemas mais em função temporal do que espacial. A intuição consiste em pensar em termos de duração, pois é nela que se encontra o poder de variar qualitativamente em relação a si mesma, agrupando, assim, dois estados da diferença, conforme advertimos na apresentação deste nosso subcapítulo: as diferenças de natureza e a diferença interna. Conforme esclarece Deleuze, embora seja verdadeiro na perspectiva da primeira “viravolta da experiência”, é apenas superficialmente que as diferenças de natureza se estabelecem entre duas coisas ou tendências, visto que a diferença de natureza está toda de um lado da divisão entre duração e espaço: “todas as outras divisões, todos os outros dualismo a implicam, dela derivam ou nela terminam. Ora, não podemos nos contentar em simplesmente afirmar uma diferença de natureza entre a duração e o espaço. A divisão se faz entre a duração, que ‘tende’, por sua vez, a assumir ou a ser portadora de todas as diferenças de natureza (pois ela é dotada do poder de variar qualitativamente em relação a si mesma), e o espaço, que só apresenta diferenças de grau (pois ele é homogeneidade quantitativa). Portanto, não há diferença de natureza entre as duas metades da divisão; a diferença de natureza está inteiramente de um lado. É ainda nesse sentido que Deleuze destaca que até mesmo a diferença entre as diferenças de grau e as diferenças de natureza só se revelam do lado destas, visto que é a duração “que nos propicia diferenças de natureza que correspondem em última instância às diferenças de proporção tal como aparecem no espaço e, antes, na matéria e na extensão” [5]. Quando dividimos alguma coisa conforme suas articulações naturais, temos, em proporções e figuras muito variáveis segundo o caso: de uma parte, o lado- espaço, pelo qual a coisa só pode diferir em grau de outras coisas e de si mesma (aumento, diminuição); de outra parte, o lado-duração, pelo qual a coisa difere por natureza de todas as outras e de si mesma (alteração).”[6] Por exemplo, um pedaço de açúcar; temos de um lado o espaço, que somente nos dá diferenças de grau entre esse pedaço de açúcar e qualquer outra coisa, e de outro lado temos a duração, um modo de ser no tempo, que se revela quando o açúcar se dissolve, quando observamos que ele difere por natureza de si mesmo mas também das outras coisas (neste caso, nossa própria duração serve de reveladora a outras durações que “pulsam com outros ritmos”[7]). Portanto, é na duração que se dão as diferenças de natureza (alteração), ou melhor dizendo, ela é a multiplicidade do reagrupamento das diferenças, enquanto que o espaço não é mais que o lugar e o conjunto das diferenças de grau (aumento e diminuição). Nesse sentido, a intuição se caracteriza como movimento por meio do qual nossa própria duração comunica-se imediatamente com outras durações, das quais ela se distingue por natureza, recalcando a ilusão propiciada pelos mistos que se apresentam como diferenças de grau para a inteligência na experiência ordinária do mundo, isto é, na matéria e na extensão.




[1] DELEUZE, G. Bergsonismo, p.13


[2] Cf. O influente estudo e interpretação de León Husson citado por Deleuze: HUSSON, L. L´intellectualisme de Bergson: genèse et développement de la notion bergsonienne d´intuition Paris: PUF, 1947.


[3] BERGSON, H. “Matière et Memoire”, p.321 apud DELEUZE, G. Bergsonismo, p.18


[4] DELEUZE, G. Bergsonismo, p.20


[5] DELEUZE, G. Bergsonismo, p.25


[6] DELEUZE, G. Bergsonismo, p.22


[7] DELEUZE, G. op.cit, p.23 (“Ela significa que minha própria duração, tal como eu a vivo, por exemplo, na impaciência das minhas esperas, serve de revelador para outras durações que pulsam com outros ritmos, que diferem por natureza da minha. E a duração é sempre o lugar e o meio das diferenças de natureza, sendo inclusive o conjunto e a multiplicidade delas, de modo que só há diferenças de natureza na duração – ao passo que o espaço é tão-somente o lugar, o meio, o conjunto das diferenças de grau”.)



 
 
 

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