O pior e o melhor de Nietzsche
- Guilherme Almeida
- 10 de fev. de 2016
- 4 min de leitura

A fama, principalmente a póstuma, pode ser um dos destinos mais ingratos ao conjunto da obra e do pensamento de um filósofo. Destino não apenas ingrato mas singular, na medida em que frequentemente serão justamente os admiradores e os bajuladores - e não exatamente os adversários, como se costuma supor - os protagonistas das mais tolas reduções e simplificações da evolução do pensamento assinado pelo morto. Nietzsche é um caso exemplar - mais de um século após sua morte, poucas obras foram (e continuam sendo) reduzidas a pequenos slogans adolescentes para contestação juvenil como a sua, o que origina uma certa má vontade, por vezes, da parte dos que alegam que "já passaram dessa fase" ou nem mesmo passaram por ela (Nota: Mas se estes passaram mesmo dessa fase, como dizem, deveriam saber distinguir muito bem, ao longe inclusive, os alhos dos bugalhos, não é mesmo?). De nietzschianos criados a leite-com-pera os antigos fotologs estavam cheios, por exemplo, muitos devem se lembrar deste fenômeno cultural que já rendeu boas piadas involuntárias, outras nem tanto. Com efeito, o estilo aforismático e iconoclasta de Nietzsche tem um alto poder de sedução para rebeldes ao estilo "mamãe, não quero couve", em busca por frases de efeito, além da facilidade (apenas ilusória) de parte da obra se apresentar em curtos aforismas, o que talvez seja um atrativo a mais para quem não tem muito fôlego para leitura... Prova disto, curiosamente, é o fato das velhas polêmicas acerca das supostas apropriações "reacionárias" de Nietzsche - ancoradas em uma leitura enviesada de seus momentos de defesa da desigualdade enquanto elemento natural e cósmico ("não há nenhum elemento perfeitamente igual a outro na hierarquia da natureza, por que esperar isso quanto ao conjunto dos homens?"), donde suas críticas às falsificações democráticas, à demagogia do socialismo mitigado e ao instinto de rebanho do homem mediano - passarem longe de provocar alguma faísca de perplexidade ou curiosidade em favor de uma reflexão mais consistente por parte dessa turma. Não falaremos mais deles. Por enquanto, no que cabe aqui neste breve ensaio, basta termos em conta que o pior de Nietzsche são os nietzschianos. Partamos então ao melhor de Nietzsche, isto importa bem mais. Em mim sempre permanece, a cada vez que volto a seus livros, a impressão que o melhor de Nietzsche não se encontra nos textos de aura "visionária" ou "profética" - para citar os adjetivos de mau gosto recorrentemente atribuidos pelos discípulos mais cândidos. Ou seja, não consigo encontrar o melhor de Nietzsche no Zaratustra ou nO Anticristo. Encontro o seu melhor em Humano, Demasiado Humano, um de seus primeiros livros (1878), escrito na juventude, onde o estilo é cristalino, quase-Iluminista, uma espécie de Montaigne mais lúcido e cruel consigo mesmo, um ceticismo afirmativo da melhor lavra, que não recusa a (cri)ação nem a verdade como valor ("A verdade é mais rara de ser pronunciada não quando é perigoso dize-la, mas quando ela se torna embaraçosa", assinala um dos aforismas finais do livro). Em Humano, Demasiado Humano - obra que geralmente os "pós-modernosos" apreciam deixar em segundo plano - encontramos uma fina crítica da existência miserável das bestas de carga do século XIX (quais sejam, o "homem de Estado", o "comerciante", o "funcionário" e o "cientista", entendidos aqui como personagens conceituais, é bom que se frise) que dá o tom geral do elogio à liberdade superior que somente aquele que cria algo capaz de ultrapassar a si mesmo - ao invés dos que se limitam a emitir juízos ressentidos acerca das criações alheias, como compensação a sua impotência - é candidato a experimentar. Egoísmo virtuoso e aristocrático? Talvez, embora o rótulo não faça jus às nuanças caleidoscópicas que evoluem ao longo dos capítulos, de leitura prazerosa como poucos na história da filosofia. Sobretudo porque não há (neste) Nietzsche a pressa em incompatibilizar em absoluto o indivíduo anti-metafísico com os fins da cultura. A aspiração ao fim da metafísica em Humano, Demasiado Humano vem sempre acompanhada de um certo comedimento e precaução (quase conservadora, para alguns; pouco importa, para mim) que nem sempre é de praxe aos golpes de martelo posteriores de Nietzsche. Nesse sentido, no §20, intitulado "Alguns degraus para trás", abordando a ficções religiosas que ergueram a nobreza (mas também a possibilidade de baixeza) de certos valores ocidentais, Nietzsche argumenta que "é necessário que o homem apreenda em tais representações a sua justificação histórica e também psicológica, é necessário que reconheça como daí advém a maior vantagem para a humanidade, e como sem esse movimento de recuo, nos despojaríamos dos melhores resultados obtidos pela humanidade até nossos dias". Nesse ponto, Nietzsche permanece próximo ao problema que mobilizava Voltaire e Diderot após a Revolução Francesa. Em tempos como os nossos, de desconstruções de botequim e de problematizações feitas com o dedo indicador em vez do cérebro, a leitura de Humano, Demasiado Humano pode servir como um convite ou um ardiloso lembrete daquilo que reza seus parágrafos §315, §482 e §483 : "aquele que não souber por suas ideias no gelo não deverá lançar-se no calor da discussão"/ "opiniões públicas: preguiças privadas"/ "as convicções são inimigos mais perigosos da verdade do que as mentiras".
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