1966: O ano em que Foucault vendeu como pãezinhos
- Guilherme Almeida
- 6 de jan. de 2016
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“Está em curso de formação uma cultura não-dialética”[1], declarava Foucault em 1966, ano em que As palavras e as coisas “vende como pãezinhos”, conforme expressão estampada na edição de Le Nouvel Observateur de 10 de agosto daquele ano[2]. O livro integrou a coleção “Biblioteca das Ciências Humanas” da Gallimard, dirigida pelo historiador Pierre Nora. Acerca da problemática nitidamente estruturalista da coleção comentará o editor, anos depois, em entrevista a François Dosse:
Esboçam-se pesquisas convergentes entre disciplinas separadas, em torno de uma problemática comum fundada no fato de que os homens falam para dizer coisas pelas quais não são forçosamente responsáveis, levam a cabo ações não forçosamente almejadas, são atravessados por determinações das quais não são conscientes e que os comandam (...) Por outro lado, um segundo movimento atravessava estas pesquisas, o conteúdo sóciopolítico deste saber ao qual se atribuía um valor, no limite, subversivo.[3]
Ao destacar o “conteúdo sociopolítico” e o “valor subversivo” da coleção, Pierre Nora toca em um aspecto decisivo do momento francês do estruturalismo. No que se refere a isto, caso tomemos As Palavras e as Coisas — melhor dizendo, seus efeitos[4] — como elemento de análise, pode-se dizer que neste momento Foucault dava visibilidade a uma série de suspeitas sobre uma noção aparentemente tão inocente como a de “homem”, a qual confrontava toda uma tradição humanista embutidas na filosofia e nas ciências humanas:
Uma coisa em todo caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tenha colocado ao saber humano (...) [seu aparecimento] foi o efeito de uma mudança nas disposições fundamentais do saber. O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo.[5]
Pois bem. Se é verdade que várias constelações teóricas se afastarão em definitivo da ‘galáxia estruturalista’ em meados da década de sessenta, também é possível afirmar que o momento francês do estruturalismo as interpelou decisivamente. Diante disto, consideramos como adoravelmente provocadora uma entrevista concedida por Foucault em 1983[6] — vinte anos depois, portanto, do momento mais explosivo do estruturalismo na França —, onde ele sugere que, à parte aqueles que aplicavam métodos estruturais na linguística e na mitologia comparativa, nenhum dos atores “que, por vontade ou à força, receberam a etiqueta de estruturalista sabiam exatamente do que se tratava”[7]. Decerto, argumenta Foucault, teria havido aqueles que aplicavam o método estrutural em domínios muito precisos, como a linguística ou a mitologia comparada, e que sabiam bem o que era o estruturalismo. Mas desde que se ultrapassassem esses domínios de contornos bem estabelecidos, talvez fosse mais apropriado, segundo a análise de Foucault, tomar o momento francês do estruturalismo nos anos 60 contra o pano de fundo do formalismo europeu. Comenta, a respeito, Foucault:
Não tenho certeza de que seria muito interessante tentar redefinir o que se chamou, nesta época, de estruturalismo (...) O que me surpreende no que se chamou de movimento estruturalista na França e na Europa Ocidental por volta dos anos 60 é que ele era efetivamente um eco do esforço realizado em certos países do Leste, e em particular na Tchecoslováquia, para se libertar do dogmatismo marxista.[8]
Na avaliação de Foucault, ao lado dos debates acerca do estruturalismo na França, haveria outra questão de fundo: ao lado do barulho das polêmicas francesas e regionais, existiria ainda o murmúrio proveniente do incremento das pesquisas formalistas que se desenvolviam na URSS e na Europa central desde os anos 20 (Troubetskoy, Jakobson, Propp, Bakhtin), as quais, anteriores à revolução russa, foram duramente perseguidos pelo estalinismo. Conforme narra Foucault,
a cultura, o pensamento e a arte formalistas no primeiro terço do século XX foram em geral associados a movimentos políticos, digamos críticos, de esquerda e mesmo, em certos casos, revolucionários, e o marxismo ocultou tudo isso: ele fez uma crítica violenta ao formalismo na arte e na teoria, que aparece claramente a partir da década de 30. Trinta anos depois (...) em certos países do Leste e em um país como a França, pessoas [começam] a abalar o dogmatismo marxista a partir de formas de análise, de tipos de análise que são obviamente inspirados pelo formalismo[9].
Em outras palavras, para Foucault, muitas das contendas colocadas em torno do estruturalismo — notadamente no que tange às acusações marxistas de “tecnocracia do pensamento” e de “muralha burguesa” — podem ser também apreendidas como um contragolpe de conflitos que se colocavam na Europa oriental, sob o domínio da União Soviética. Foucault se refere a duas pequenas experiências pelas quais passou fora da França, que ilustrariam esse quadro[10]. A primeira diz respeito à visita de um célebre filósofo francês — muito provavelmente Sartre —, esperado com grande expectativa pelos tchecos, dado que se tratava não só da primeira visita de um intelectual não ligado oficialmente ao PC, como também por se dar em um período de grande agitação, próximo aos acontecimentos da primavera de Praga. Esse filósofo, narra Foucault, teria criticado severamente o estruturalismo, afirmando que o mesmo, ao tentar se opor às correntes ideológicas marxistas, se encontrava a serviço da burguesia e do capitalismo. Seguiu-se uma grande decepção por parte da plateia, porque o filósofo, assim, fornecia uma arma excepcional ao poder constituído pelos estalinistas e seus remanescentes na Tchecoslováquia, os quais naquele momento acabavam de ganhar um novo e inusitado aliado...
O outro relato diz respeito à experiência de Foucault na Hungria, em 1967. Convidado para um debate em uma universidade, propôs como tema da conferência o estruturalismo. Obteve como resposta de seu intérprete na ocasião: “há três coisas sobre as quais não podemos falar na universidade: o nazismo, o regime Horty e o estruturalismo”[11]. Conta Foucault que, a partir destas duas experiências, passou a compreender as discussões inflamadas acerca do estruturalismo como representando também a repercussão de lutas extremamente importantes que se desenrolavam na Europa oriental, em relação às quais a maior parte da comunidade acadêmica francesa estava cega[12].
Concomitante a isto, o que estaria em jogo na penetração do estruturalismo — agora falando em específico da França —, no que se refere à forte rejeição inicial encontrada pelo mesmo entre a comunidade marxista, seria o desafio posto por um discurso que se sustentaria em uma tripla negativa, a saber: não eram irracionalistas, não eram de direita enão estavam inseridos nem no interior do dogmatismo estalinista, nem do humanismo marxista e suas variantes. Neste sentido, a constituição de uma larga e difusa rede de pesquisas, ramificadas em diversos campos e regiões do saber, legitimando-se sem maiores concessões ao materialismo dialético, foi uma questão importante na assimilação — e resistência — francesa à problemática estruturalista.
Voltando ao caso específico de Foucault, e as acusações e mal entendidos que sofrera em torno do rebatido tema da ‘morte do homem’ associado ao estruturalismo, é essencial destacar o seu esforço e empreendimento teórico em As palavras e as coisas de, ao mergulhar radicalmente na historicidade, conjurar as quimeras das “origens” e de suas parceiras, as “finalidades”[13]. Decerto, todo um ajuste de contas com a hegemonia fenomenológica e marxista do pós-guerra atravessa a problemática tornada visível por As Palavras e as Coisas, como ficará explicitado nas diversas entrevistas concedidas por Foucault naquela ocasião, tal como a publicada por La Quinzaine Littéraire, em maio de 1966:
Há cerca de 15 anos, de uma maneira muito rápida, e sem que houvesse aparentemente razão, nós apercebemo-nos de que estávamos muito longe da geração precedente, da geração de Sartre, de Merleau-Ponty – a geração dos Temps Modernes que havia sido a lei para nosso pensamento e um modelo para nossa vida (...) O humanismo foi uma maneira de resolver em termos de moral, de valores, de reconciliação, problemas que não se podiam resolver de modo algum. Conhece a frase de Marx? A humanidade só formula problemas que pode resolver. Eu creio que se pode dizer: o humanismo finge resolver problemas que não se pode formular! Salvar o homem, redescobrir o homem no homem etc, é o fim de todas essas tentativas palavrosas, a um tempo teóricas e práticas, para reconciliar, por exemplo Marx e Teilhard de Chardin (...)...) a nossa tarefa atualmente é libertamo-nos definitivamente do humanismo, e nesse sentido o nosso trabalho é político, na medida em que todos os regimes do Leste e do Oeste fazem passar a sua mercadoria sob a bandeira do humanismo[14].
E em outra entrevista, na revista Arts et Loisirs, em junho do mesmo ano:
Ora, não somente o humanismo não existe nas outras culturas, mas está provavelmente na nossa cultura na ordem da miragem.(...) Em As Palavras e as Coisas, quis mostrar de quais peças e quais pedaços o homem foi composto no fim século XVIII e início do XIX. Tentei caracterizar a modernidade dessa figura, e o que me pareceu importante era mostrar isso: não é tanto porque se teve um cuidado moral com o ser humano que se teve a idéia de conhecê-lo cientificamente, mas é pelo contrário porque construiu-se o ser humano como objeto de um saber possível que em seguida desenvolveram-se todos os temas morais do humanismo contemporâneo, temas que são encontrados nos marxismos frouxos, em Saint-Exupéry e Camus, em Teilhard Chardin, resumidamente, em todas essas figuras pálidas da nossa cultura.[15]
No que diz respeito a Sartre, Foucault não deixa, na ocasião, de comentar acerca da Crítica da Razão Dialética, caracterizando-a como o “magnífico e patético esforço de um homem do século XIX para pensar o século XX” — Sartre seria “o último dos hegelianos”:
Grosso modo, pode-se dizer o seguinte: o humanismo, a antropologia e o pensamento dialético estão ligados. Aquilo que ignora o homem é a razão analítica contemporânea, que vimos nascer com Russel e que aparecerá em Lèvi-Strauss e nos lingüistas. Essa razão analítica é incompatível com o humanismo, enquanto que a dialética, ela, convoca acessoriamente o humanismo. Ela o convoca por razões diversas: porque ela é uma filosofia da história, porque ela é uma filosofia da prática humana, porque ela é uma filosofia da alienação e da reconciliação. Ela se nomeia por várias razões: porque é uma filosofia da história, porque é uma filosofia da prática humana, porque é uma filosofia da alienação e da reconciliação. Por todas essas razões e porque continua, no fundo, uma filosofia do retorno a si mesmo, a dialética promete em certa medida ao ser humano que ele se tornará um homem autêntico e verdadeiro. Ela promete o homem ao homem e, nessa medida, não é dissociável de uma moral humanista. Neste sentido, os grandes responsáveis do humanismo contemporâneo, são evidentemente Hegel e Marx. Ora, me parece que ao escrever a Critique de la raison dialectique de algum modo Sartre colocou um ponto final neste episódio da nossa cultura, tornando a fechar um parênteses que se inicia com Hegel. Ele fez tudo o que pode para reintegrar a cultura contemporânea (quer dizer, as aquisições da psicanálise, da economia política, da história, da sociologia) à dialética. Mas é característico que ele não pudesse deixar à margem tudo aquilo que faz parte da cultura contemporânea: lógica, teoria da informação, lingüística, formalismo[16].
Os alvos contra os quais Foucault chegará, de certo modo, a empunhar alguma bandeira estruturalista — valorizando, em As palavras e as coisas, as ‘contra-ciências’ representadas pela psicanálise, pela lingüística e pela etnologia — são os “humanismos frouxos”, sejam eles de filiação marxista ou fenomenológica. Mas não somente. Como deixa entrever a referência à reconciliação ‘Marx-Teilhard de Chardin’, Foucault tratava também de registrar seu desprezo pelos apparatchiks (burocratas partidários) que proliferavam no PCF, os quais estariam sempre dispostos a um ecletismo que possibilitasse ‘fazer passar a mercadoria’. Neste sentido, convém lembrar que a trajetória do PCF nos anos sessenta é marcada por uma estratégia efetivada por seus intelectuais de maior prestígio, como Roger Garaudy: lançar-se aos ecletismos doutrinários mais variados, com vistas à aproximação ao “pensamento burguês”, acompanhando as alianças firmadas junto a antigos rivais políticos, como a SFIO e o regime gaullista. O lema passava a ser o do “humanismo socialista”.
Em todas as intervenções acerca do ‘estruturalismo’ ao longo do dito “ano-estrutural” de 1966, além de remeter Sartre ao século XIX, Foucault opta por se situar firmemente ao lado de Lévi-Strauss, Dumézil, Lacan e Althusser — apreendidos como legítimos representantes da modernidade do século vinte. “O estruturalismo não é um método novo – é a consciência desperta e inquieta do saber moderno”; tal enunciado, recortado de As palavras e as coisas, irá se tornar um potente mote contra “a antropologização, (...), grande perigo interior do saber”[17], o que justifica a apreciação futura de Eribon: “Parece evidente que Foucault se põe então em pé de igualdade na galáxia estruturalista”[18].
Quanto a este ponto, é importante assinalar que embora Foucault tenha insistido em nunca ter sido um estruturalista — insistência que foi também uma saudável resistência às tipologia redutoras e por vezes mortíferas —, irá assumir que o problema discutido pelo estruturalismo soava próximo de seus interesses; em especial, o problema do sujeito e de sua reformulação[19]. Para Foucault, as investigações estruturalistas, muito diversas sob outros aspectos, convergiam em um único ponto: sua oposição filosófica à “afirmação teórica do primado do sujeito”. Hegemônica na França desde que o cartesianismo alçara a condição de ‘filosofia oficial’, e que tendo servido de postulado fundamental para uma ampla gama de abordagens filosóficas dos anos 30 aos 50, em tal afirmação se inclui o ‘existencialismo fenomenológico’, o qual segundo Foucault, seria “uma espécie de marxismo às voltas com o conceito de alienação”[20].
No que tange especificamente ao marxismo, cabe inicialmente recordar que em As palavras e as coisas, Foucault o remetia à mesma ‘episteme’ novecentista de Ricardo, sem lhe conceder qualquer espécie de privilégio:
(...) no nível profundo do saber ocidental, o marxismo não introduziu nenhum corte real; alojou-se sem dificuldade (...) no interior de uma disposição epistemológica que o acolheu favoravelmente (...) e que ele não tinha (...) nem o propósito de perturbar nem sobretudo o poder de alterar, por pouco que fosse, pois que repousava inteiramente sobre ela. O marxismo está no pensamento do século XIX como peixe n´água: o que quer dizer que noutra parte qualquer deixa de respirar (...) Seus debates podem agitar algumas ondas e desenhar sulcos na superfície: são tempestades num copo d´água.[21]
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Referências e citações:
[1] FOUCAULT, M. « L´homme est-il mort? » (entrevista com C. Bonnefoy), Arts et Loisirs, no 38, 15-21, junho de 1966, pp. 8-9. Reproduzido em FOUCAULT, M Dits et Écrits, vol. I., op.cit.,p. 540-544
[2] cf. ERIBON, D. Michel Foucault – uma biografia,op.cit.,p.159
[3] DOSSE, F. História do estruturalismo, vol.1,op.cit.,p.355-356
[4] Não ignoramos que Foucault, apesar de um inegável flerte com o dito ‘estruturalismo’, jamais se tenha considerado exatamente um estruturalista, na medida em que nunca reconheceu a existência necessária de estruturas formais ou reais, assim como sempre se manteve distante da lógica de identidade ou mesmo do cientificismo acirrado que por vezes a rubrica ‘estruturalismo’ incorporou. No entanto, cabe assinalar que, enquanto acontecimento, As Palavras e as Coisas funcionou como importante elemento do momento de difusão francesa da problemática estruturalista. É este modo de funcionamento que estamos acompanhando.
[5] FOUCAULT, M. As palavras e as coisas São Paulo: Martins Fontes, 1987, p.403
[6] FOUCAULT, M “Estruturalismo e Pós-Estruturalismo”, Telos, vol.XVI, no 55, primavera de 1983, p.195-211. Reproduzido em FOUCAULT, M. Ditos e Escritos, vol.lI, op.cit.,p.308-334
[7] idem, ibidem, p.307
[8] idem, ibidem, p.308
[9] FOUCAULT, M “Estruturalismo e Pós-Estruturalismo” in: Ditos e Escritos, vol.lI,op.cit., p.308
[10] in: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos, vol.lI, op.cit.,p.30-35
[11] FOUCAULT, M. Ditos e Escritos, vol.lI, op.cit.,p.34
[12] FOUCAULT, M “Estruturalismo e Pós-Estruturalismo” in: Ditos e Escritos, vol.lI,op.cit., p.308
[13] FOUCAULT, M. As palavras e as coisas,op.cit.,p.348. Esta temática será retomada por Foucault, com novas nuanças, em “Nietzsche, a genealogia e a história” [In : FOUCAULT, M . “Microfísica do poder”,p.15-37].
[14] reproduzido em COELHO, E.P (org) Estruturalismo – antologia de textos teóricos,op.cit.,p.29
[15] FOUCAULT, M. « L´homme est-il mort? » (entrevista com C. Bonnefoy), Arts et Loisirs, no 38, 15-21, junho de 1966, pp. 8-9. Reproduzido em FOUCAULT, M Dits et Écrits, vol. I., op.cit.,p. 540-544
[16] ibidem.
[17] FOUCAULT, M As palavras e as coisas,op.cit,p.365
[18] ERIBON, D. Michel Foucault – uma biografia,op.cit.,p.189
[19] cf. TROMBADORI,D. « Entretien avec M. Foucault »' in Dits et écrits (1984-1988), vol.IV., Paris, Gallimard, 1994
[20] idem,ibidem,p. 73.
[21] FOUCAULT, M . As palavras e as coisas, op.cit.,p.276
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