Memes, mimimis e outros seres do bestialógico recente: o fundo comum de um falso antagonismo
- Guilherme Almeida
- 18 de dez. de 2015
- 4 min de leitura

Cada época dá origem aos diletantes e ao filisteísmo cultural que lhe convém, com os recursos de seu tempo – nada de importante até aqui, não se trata de entender esta constatação como algo a se lamentar por si só. Nas arenas ideológicas das redes sociais, onde o formato “meme”, de maneira espetacular, ameaça não apenas a fazer graça, mas – muito mais grave – sob o pretexto de servir de estratagemas de combate vemos o formato se imiscuindo no modo intrínseco do próprio pensamento cotidiano se organizar, não é muito difícil perceber dois tipos de atitudes antagônicas – antagonismo apenas aparente, conforme veremos, visto que elas compartilham, em larga medida, de um fundo comum no qual ambas as atitudes se movem a montante e a jusante:
a crítica violenta que rechaça em bloco toda a produção de uma tradição de pensamento, alegando algum pecado conceitual imperdoável — ou mesmo de caráter na personalidade de algum suposto representante mais eminente.
a adoração devota e irrestrita dos discípulos que aderem integralmente a uma perspectiva antes de compreendê-la — ou antes renunciam a compreendê-la para melhor adorá-la.
A mera constatação de que alguns indivíduos possam por fraqueza, desespero ou frustração, por exemplo, abraçar integralmente uma ou outra perspectiva filosófica ou ideológica de “corpo e alma”, fazendo dela a “segurança ontológica” de suas identidades — o que implicará, portanto, pouca disponibilidade em se haver com o que a ela se confronte — pouco me interessa aqui. Pois tão estéril quanto esta triste constatação — a qual ademais não é privilégio de nossa época — seria uma tola apologia gratuita do rigor pelo rigor, como se a fidelidade ao texto ou aos autores devesse se sobrepor ao exercício do pensamento, mesmo que seja um pensamento torpe e tateante. Não se trata disto, pois creio, inclusive, que já temos polícia discursiva o bastante nas redes sociais. O que me parece mais digno de nota é outra coisa: justamente a tarefa de determinação do que entendo ser o “fundo comum” às duas atitudes aparentemente antagônicas, apontando o sentido crítico-diagnóstico ou os efeitos reativos de ambas as atitudes, presentes também em espaços de difusão que não se restringem às redes sociais.
Nesse sentido, um dos efeitos reativos que me parece mais evidente chega a ser um truísmo que talvez não necessitasse de muita atenção. Mas vá lá, recordemos Ortega y Gasset, que precisou este efeito de forma cristalina em suas Meditações do Quixote: “Alguns se negam a reconhecer a profundidade de algo porque exigem do profundo que se manifeste como o superficial. Não aceitando que há várias espécies de claridade, atentam exclusivamente à peculiar claridade das superfícies. (...) Os egípcios acreditavam que o Vale do Nilo era o mundo todo”. Em outras palavras, os novos filisteus da cultura, apaixonados pelos esquemas prévios de interpretação da realidade (tanto faz que sejam “à direita” ou “à esquerda”) são como que a paranoia tornada modelo epistêmico: tal qual uma comédia dos sistemáticos, os menores fatos são rapidamente absorvidos e explicados por uma “teoria” já-dada, plena e perene. Não há furos, e quando eventualmente os mesmos aparecem, em virtude de alguma singularidade selvagem, ou uma realidade que teima em se curvar à “teoria”, o que acontece? Voilá! Os mesmos antagonistas de sempre ("petralha!", "coxinha!", "comunista!", "reaça!", "feminazi!", "esquerdomacho!") serão convocados a ocupar o lugar de “band-aid” que tampona os furos dos esquemas prévios, de modo a preservar a segurança ontológica dos envolvidos.
Uma hipótese: a busca sincera por se compreender a experiência e beliscar uma pequena verdade que seja (de uma trama quase sempre traiçoeira e multifacetada), quando possível, é uma tarefa desestabilizadora e insuportável para quem muito se apega a uma “identidade” ou ao “ –ismo” da moda com o qual se “identifica”. Pois pensar verdadeiramente exige, a cada vez, um esforço heroico de desprendimento frente às expectativas naturais da consciência em querer ver confirmada e espelhada, no turbilhão contraditório das contingências da experiência real, os esquemas prévios que ela carrega, impondo, portanto, um refazimento permanente da sensibilidade e do entendimento.
Temos aqui também uma ordem das paixões subjacente à ordem das razões: o debate movido pelo ressentimento e pelo ódio nos revela suas consequências no âmbito cognitivo, não se trata aqui portanto, de um apelo a um moralismo de convento. Mas em evidenciar que para quem dialoga e debate movido pelo ódio e pelo ressentimento só existe o ponto onde se fixa o ódio e tudo o mais gira a seu redor, tornando-se assim as nuances e as relações objetivas cada vez mais desconhecidas; pouco a pouco vai se esvanecendo as possibilidades de se saber algo efetivamente sobre as coisas, seu funcionamento e conexões sutis – ao invés disso só se fala, sem se dar conta, de si próprio a pretexto de falar dos outros, numa imagem invertida, projetada e reativa das cadeias de causas e efeitos. Tem-se aqui, ao menos hipoteticamente, o fundo comum que anima frequentemente o falso antagonismo de “petralhas versus coxinhas”, “socialistas morenos versus olavetes”, “meme versus mimimis”, dentre outros seres do bestialógico recente.
Comments